Padre Djalma Lúcio Magalhães Tuniz
Pároco de Américo de Campos e Pontes Gestal
Em uma aula recente, como aluno atento e disposto a aprender sempre mais, participei de uma dinâmica contando uma parte da minha vida para o grupo analisar e me ajudar na organização dos pensamentos e experiências vividas. Com o desejo de ressignificar os caminhos percorridos até agora e ciente de que estamos sempre em construção, abri meu coração.
Foi, para mim, libertador. Fiquei preparado para ouvir as orientações e, confesso, a ajuda terapêutica da escuta sempre nos deixa mais leves. Dividimos o peso, redescobrimos caminhos, deixamos de lado algumas ideias que não fazem mais sentido em nossa história.
Comecei ansioso por falar tudo de uma vez só. Como se a palavra estivesse parada em minha garganta, represando sentimentos, dores e culpas. Mas, aos poucos, a fala foi ficando mais mansa, compassada e compreensiva. Consegui colocar para fora tudo o que queria e fui conduzido, com muito respeito, a uma reflexão profunda e sincera sobre a minha vida.
Depois disso, senti o desejo de recontar essa história em palavras escritas, eternizando assim os sentimentos de um dia muito especial, que considero fundante para mim. Um dia que marcou os rumos da minha vida e me fez livre para retomar quem realmente sou, o que quero e espero de mim mesmo.
Passei os últimos dias encaixotando os livros. Coloquei minhas roupas nas malas, embalei alguns quadros e imagens. Deixei pelos cantos alguns objetos que não queria mais. Junto deles ficaram também algumas pessoas, sentimentos, expectativas que não couberam na bagagem e precisava deixar ali. Não se enquadrariam na nova vida que pretendia viver. Não porque eram ruins, simplesmente porque não falavam mais sobre mim. Não pertenciam ao mundo que precisava voltar a viver.
Fui dormir tarde naquela noite. O quarto estava vazio. Apenas a cama e os móveis. Sem quadros, sem cores, sem cheiros, sem choros e sem vida. Apenas o meu coração batendo e meus pensamentos desordenados entre o passado, o presente e o futuro, até adormecer, sem sonho.
Acordei antes do sol. Algumas estrelas ainda brilhavam, atrasadas em sua missão de se esconderem antes dos primeiros raios. Olhei toda a casa, cômodo a cômodo. Vivi ali dez anos e tinha muito de mim nos móveis, nas paredes e nos jardins. Fui até o cemitério e fiz uma oração de gratidão aos que me conheceram e já descansavam no sono eterno.
Ouvi os pássaros acordando a aurora e, como num filme antigo, o trem passou no seu caminho de ferro, bem ao meu lado, ligeiro e barulhento. Lembrei-me da primeira vez que ouvi o seu som e fiquei contando os seus vagões. Foi embora, deixando novamente o silêncio, a paz, o arvoredo e os primeiros raios de sol anunciando o novo dia.
Voltei para casa, entrei na capela e rezei. Agradeci as bênçãos recebidas nos últimos anos e pedi a proteção para os próximos que viriam. Não disse: “Até breve!”, pois sabia que não retornaria. Trazia no coração uma paz inquieta. O tipo de paz que não acalma. Conforta, mas desinstala. Traz esperança, mas também medo.
Coloquei tudo no carro, fiz o sinal da cruz e parti, sem olhar para trás, receoso, talvez, de virar uma estátua de sal, como aconteceu com a mulher de Ló, na Bíblia. A coragem, no sentindo pleno dessa palavra, fez-se morada em meu coração. Impulsionou minhas decisões, ajudou-me a fazer as malas e me lançar como um paraquedista que se joga do avião e, em pleno ar, aprecia a paisagem, certo de que o paraquedas irá abrir e chegará são e salvo ao solo.
Os anos se passaram. Olho para trás e consigo perceber ali uma parceria muito sagrada: a sede de liberdade e a fé em um Deus que sempre faz caminho conosco. Para que essa parceria aconteça é preciso agir com o coração. Uma das definições da palavra coragem é agir apesar do medo, do temor e da intimidação. E foi isso que me impulsionou a recomeçar o meu caminho.
Carreguei comigo muitas coisas importantes, como a minha história de vida, minha experiência, meu olhar sobre o mundo, minha fé, minha vocação e tantas pessoas que, ao longo da minha jornada, encontrei pelo caminho. Sou grato a tudo o que me ensinaram e a todos que me ajudaram a tomar decisões, rever atitudes, moldar sentimentos.
Não acertei sempre, mas também não errei em todas as decisões. Encontrei pessoas boas e que também estão buscando o verdadeiro sentido de suas vidas. Isso foi gratificante e necessário para ser quem sou hoje. Aos que errei, peço perdão e o desejo de não lhes ter feito mal.
Agora, é seguir em frente. Para o filósofo Jean-Paul Sartre: “a liberdade é a condição existencial do ser humano, inerente à sua existência, e não uma opção”. Para Paulo, em Gálatas: “É para a liberdade que Cristo nos libertou”. Eis o sentido da vida, da fé em Jesus Cristo e da paz que tanto almejamos encontrar.