Ouvir o inaudível

Padre Djalma Lúcio Magalhães Tuniz

Pároco de Américo de Campos e Pontes Gestal

 

Cheguei aqui junto com a noite. O céu ainda pintado de azul e vermelho trazia consigo um vento impetuoso, carregado de frio e neblina. A grande casa que acolhia todos os retirantes surgiu em meio às árvores, dando as boas vindas e prometendo um cantinho quente e acolhedor para aqueles que chegavam. Sentia-me um pouco cansado. “Vamos descansar um pouco”, lembrava a todo instante o convite de Jesus aos seus apóstolos, no final de um dia cheio de trabalho. E aceitei o convite. Vim descansar um pouco.

Mas não era apenas um descanso do corpo. Ficar sem nada fazer e dormir até cansar novamente. Não. Aceitei o convite para participar do retiro anual do clero da minha diocese. E, aos poucos, os padres foram chegando e o bispo também. Todos traziam bagagens para permanecerem alguns dias no alto da serra onde se localiza a cidade de São Pedro. Nas malas, junto das roupas, veio a bíblia, um caderno de anotação, túnica e estola.

Um vento incessante e gelado golpeava a casa, alta e imponente, fazendo um barulho característico de assovio, que não assustava, mas convidava a ir para cama e ficar sob os cobertores. Assim eu fiz. Depois de cumprimentar a todos, participar do jantar, fui para os meus aposentos, tomei um banho, desfiz as malas e dormi.

O dia amanheceu mais gelado ainda. A noite foi embora, mas o dia não amanheceu direito. O sol, talvez com frio também, não quis sair da cama, deixando apenas um clima desmaiado e sem vida no seu lugar. Na oração da manhã, o pregador, idoso e sábio, disse em alto e bom som: “Muitas vezes, em nossa vida, é preciso saber ouvir o inaudível”.

Senti meu coração bater um pouquinho mais forte. Veio-me a sensação de que estava no lugar certo, com o pregador certo e precisa me preparar para ouvir o que meus ouvidos não ouviriam, mas meu coração sim. “O Senhor irá falar! Fique atento”, pensei com toda a convicção que poderia ter. E, assim, abri os ouvidos da intuição e deixei que os dias corressem a exemplo do sol daquele dia, sem pressa e sem agitação interior.

Um retiro se faz com oração, descanso e boa alimentação. E, com esses três elementos básicos de um exercício espiritual, mergulhei profundamente nas palestras, leituras, partilhas e celebrações litúrgicas. Tudo vale a pena quando fazemos o propósito de aproveitar as oportunidades que nos aparecem. Poderia reclamar do frio que veio fazer o retiro conosco, do banho tomado antes das sete da manhã, do barulho que, às vezes, quebrava o silêncio proposto. Mas não queria estragar o ambiente tão propício para rezar. As possibilidades de encontrar um lugar para oração ajudava a, dentro do próprio retiro, retirar-se ainda mais.

Numa das palestras, o experiente bispo falou-nos que a misericórdia é abrir o coração aos miseráveis. Essa frase ficou martelando na minha cabeça. Só consegui compreendê-la perfeitamente quando me lembrei de que o grande autor da misericórdia é o próprio Deus. Só pode ser isso mesmo. Deus abre o seu coração para nos acolher de uma maneira tão profunda que, em nossa miserável existência, frágil e breve, temos a garantia de que há um lugar para nós nesse Coração Divino.

Tenho tentado observar o mundo e as escolhas que fazemos dentro das oportunidades que vão se apresentando em nossos caminhos. Às vezes, sem percebermos, perdemo-nos em nossas verdades. Vão se apagando os ensinamentos evangélicos que há tantos anos aprendemos sobre o amor, o perdão, a caridade, a fé, a misericórdia, e, revestidos de ódio que não sei de onde vem, empunhamos armas nas mãos para defender a nossa fé em Deus que é amor.

Na noite da vergonha, em que Judas Iscariotes entregou Jesus com um beijo, Pedro entrou em desespero. Como queria a todo custo defender o seu Senhor, pegou a espada que carregava e feriu o soldado do Sumo Sacerdote, decepando a sua orelha. Jesus disse a Pedro: “Guarda a tua espada. Deixarei eu de beber o cálice que o Pai me deu?”

“Ouvir o inaudível”. Essa passagem não foi citada no retiro, mas eu senti o coração de Pedro acelerar. Vi a confusão entre os apóstolos e os soldados. Peguei nas mãos a espada suja de sangue. Compreendi a preocupação de Jesus em não deixar ninguém impedir o seu sofrimento. É preciso entender a misericórdia como uma arma contra esse mundo inconsequente e volúvel.

Os conflitos existem e precisam ser resolvidos. Mas dar a outra face, guardar a espada, não entrar no clima do “olho por olho e dente por dente”, ainda são ensinamentos válidos no mundo de hoje, principalmente para nós cristãos. O amor precisa ser amado.

Não podemos nos esquecer de que ser misericordioso é abrir o coração ao miserável, e não desembainhar a espada da fúria e do ódio, cortando a cabeça dos inimigos. Já temos guerras demais no mundo. É preciso evitá-las.

Nosso pregador disse que: “O amor de Deus muda a vida”. E isso eu ouvi com os meus próprios ouvidos. Foi dito em alto e bom som. Quem tem ouvidos, ouça também.