Padre Djalma Lúcio Magalhães Tuniz
Pároco de Américo de Campos e Pontes Gestal
Sim, a vida com fé é muito mais interessante. Ajuda a dar um sentido ao sofrimento nosso de cada dia. Faz os dias ficarem mais azuis, mesmo diante de um céu carregado de nuvens pejadas de raios e tempestades. Aprendemos com Jesus Cristo que as cruzes fazem parte da vida e ora a carregamos com as dores e as dificuldades que a vida nos impõe ora somos apenas o Cireneu, aquele que ajudou o Senhor a carregar a sua cruz. Isso se chama responsabilidade e solidariedade.
Com a peleja da vida não podemos endurecer o coração. Não é bom entrar num mundo de murmurações. É preciso enfrentar os problemas com dignidade e com garra. A melhor forma é não caminhar só. Ter um olhar atento ao mundo ao seu redor e descobrir que há muitas pessoas em situações deploráveis e é bom segurá-las pelas mãos. Um ajudando o outro.
A solidariedade nasce desse interesse em saber a história do outro. Tornamo-nos mais humanos, mais próximos e mais fraternos quando nos abrimos ao outro. É muito bom fazer esse exercício tão esquecido no mundo de hoje e tão necessário para acalmar os corações agitados pela ansiedade e pelas preocupações da vida.
Hoje tive uma experiência sobre responsabilidade e solidariedade. A noite estava gelada. Disse a “moça do tempo” que teríamos a madrugada mais fria do ano. Estávamos todos reunidos no salão da igreja para a avaliação do mês que passou. Houve muitas celebrações, encontros, procissões e precisávamos ver se tudo ficou a contento e o que poderíamos melhorar para o próximo ano.
No final da reunião eu fiz uma brincadeira: “Vou até a sorveteria. Quem quiser pode me acompanhar”, disse em tom de gracejo devido ao frio que fazia. E não é que teve um grupo que aceitou o convite inusitado? Pois fomos para a sorveteira, que estava vazia é claro. Sentíamos muito frio, mas a alegria de ficarmos mais um tempo juntos, conversando, dando risadas e falando sobre coisas sérias, animava o ambiente.
Enquanto esperávamos o sorvete, entrou um menino com os seus dez anos de idade, carregando uma caixa pequena de isopor. Todo coberto por um pesado casaco, ofereceu trufas de chocolate pedindo se alguém queria comprar. Quando vi aquele menino tentando vender alguma coisa naquela noite gelada, procurei descobrir mais sobre ele. Disse-me que era a avó que fazia os doces para ele vender e no final das vendas dividia o dinheiro com ela. Também confessou que gostava de ter o seu dinheiro e fazia aquelas vendas por que queria, ninguém o obrigava. Senti a necessidade de ajudá-lo. Pedi um dinheiro emprestado, pois não havia levado a carteira e comprei algumas trufas. Ele saiu pela praça quase vazia devido ao frio e continuou o seu trabalho sem reclamar.
Fiquei sabendo depois que sua mãe está se tratando de uma grave doença e que ele tem mais dois irmãos. Faz esse trabalho para ajudar nas despesas e poder comprar suas coisas. Confesso que essa história me comoveu. Não é uma sensação de pena, pois vi um menino com os olhos brilhantes e com o semblante sereno, apesar do frio. Parecia satisfeito com a labuta diária em vender os doces feitos pela avó.
Parecia, para mim, que uma força interior o fazia lutar pela vida, sem reclamações e sem traumas. Sei que por ser uma criança não deveria estar ali, apesar de ainda não ser tão tarde da noite. Poderia estar brincando, estudando, dormindo. Mas nessa situação de pobreza, como brincar? Nessa situação da doença da mãe, como estudar? Nessa situação de sobrevivência, como dormir?
Ele foi embora e eu fiquei com os questionamentos sobre a minha vida. Uma comparação da minha infância para com a infância desse menino. Teria eu coragem de fazer o que ele faz? Será que ficaria traumatizado para sempre? Revoltado talvez?
A fé ajuda muito a sermos resilientes nos momentos difíceis da vida. Mas ajuda também a sermos mais solidários. Fiquei com o desejo de conhecer melhor a sua família, abençoar a sua mãe e agradecer a sua avó pela força que está dando ao seu neto, ensinando a ele responsabilidade e a não ficar chorando pelos senões que a vida impõe, mas lutar com honestidade e trabalho.
Jesus nos ensinou a não desanimar diante das dificuldades. Ensinou sobre a liberdade, mesmo diante do calvário. Mesmo morrendo injustamente ainda conseguiu perdoar os seus algozes, abrir a porta do Paraíso ao ladrão que morria ao seu lado, deixar sua mãe amparada e sentir as dores da humanidade inteira gritando: “Pai, por que me abandonastes?”.
Esse abandono que Jesus sentiu toca-nos profundamente. Faz de nós pessoas mais fortes e determinadas. Faz esse rapazinho sair pela noite fria carregando as trufas da avó e oferecendo: “Quer comprar uma trufa? Tenho de maracujá, leite ninho e chocolate”. O abandono sentido por Jesus na cruz nos garante a presença de Deus Pai sempre em nossa vida. Nunca mais sentiremos que estamos sozinhos. Não há um ser humano sem consolo, sem suporte, sem assistência, por parte de Deus. Isso a fé nos garante.
O que resta agora é fazermos a nossa parte. Estender a mão aos que precisam. Levantar a cabeça nas horas do sofrimento. Sair pela noite fria carregando nossos sonhos com determinação e simplicidade.
É preciso também encontrar um sentido para viver. E mesmo que o tempo não colabore, que a vida não seja fácil e a noite avance sem piedade, é sempre hora de pegar o nosso isopor e ir ao encontro das outras pessoas pedindo ajuda e acreditando que vai dar certo, sempre.
Obrigado menino pela sua determinação. Ainda não sei o seu nome, mas vou descobrir. Com certeza vou.