Padre Djalma Lúcio Magalhães Tuniz
Pároco de Américo de Campos e Pontes Gestal
Há alguns anos, eu, padre recém-ordenado, cheguei numa tarde de quarta-feira de cinzas a São Luís do Maranhão. Lembro a primeira coisa que senti: um ar quente que grudou em meu corpo e me fez transpirar por três meses, sem parar. O sol intenso reinava durante o dia, mesmo quando chovia. À noite, a lua ocupava o seu lugar no céu, iluminando tudo e todos. Assim, aprendi a olhar para o céu com olhos diferentes, mais atentos e admirados.
Meu contato com a comunidade paroquial foi naquela mesma tarde. Missa de Cinzas, igreja cheia, e meu superior deu-me a incumbência de proferir o sermão. Assim foi. Fiz a homilia e olhei pela primeira vez nos olhos deles e eles nos meus. Abri meu coração e fui acolhido de maneira sincera. Logo vi que, além do céu, o Maranhão tem um povo acolhedor, generoso, colorido pelas bandeiras de São João e embalado pelas matracas do bumba meu boi.
Rapidamente fui apresentado à comunidade e conheci Eunice, que cuidava e morava com sua tia Alice, e logo me disse: “Muito prazer. Sou Alice Coelho Raposo, brasileira, solteira, de maior”. E deu uma gargalhada, sem deixar de faltar com respeito ao padre jovem que tentava entender a alma maranhense. Logo elas se tornaram meu porto seguro; meu socorro em dias de saudades de casa; minha alegria em dias de tristeza; meu amparo em dias de fraqueza na fé.
Senti Deus me presentear com pessoas que ocupavam um espaço no meu coração e me acalmavam quando a falta da família, deixada em Parisi, insistia em nevoar meus olhos.
Em breve tia Alice iria completar noventa anos de idade. Imaginem, já com essa idade e ainda ia à missa diariamente, guardava na memória as histórias vividas na infância e contava com propriedade como cada um da família estava e quem já havia falecido. Aliás, uma das primeiras histórias contadas foi sobre uma doença da juventude, que a deixou tão debilitada que a fez pensar que não teria muito tempo neste mundo. Mandou providenciar uma fotografia bonita, dessas de colocar na lápide do túmulo, para todos admirarem a sua beleza juvenil, e, acreditem, mandou fazer a sua mortalha, um vestido branco com uma faixa azul, em honra a Nossa Senhora de Lourdes. Queria ser sepultada assim. Afinal, sempre foi muito devota e boa cristã.
Ri muito dessa história e, incrédulo, vi a fotografia e a mortalha, amarelada pelo tempo, pois os planos sobre a sua morte não aconteceram. Desgostosa com o tecido, tia Alice pediu para fazer outra mortalha, agora branquinha novamente e sem a faixa azul. Queria, nessa altura da vida, honrar Nossa Senhora de Fátima, deixando Lourdes para segundo plano. E quando achava de fazer graça, olhava para mim e falava: “Padre, tenho medo de quando ficar velha eu ficar caduca”. Eu ria, pois era mais fácil eu ficar velho antes da tia Alice.
E assim passaram os meus anos acompanhando os aniversários e as histórias daquela senhora. Eu mexia com ela, falava que estava com vontade de comer galinha cheia como só ela sabia fazer. Eunice já me olhava com cara de brava, sabia que iria sobrar para ela preparar essa iguaria e, no dia marcado, lá estava eu comendo a galinha cheia, feita pela Eunice, mas elogiando a tia Alice, que sem titubear agradecia com um sorriso como se fosse ela mesma a dona daquele feito.
Anos depois, presidi a missa de cem anos da tia Alice, num sábado bonito, no Santuário da Conceição, e depois, já na casa dela, ainda dancei uma valsa, como costumávamos dançar quando a conversa ficava animada e me contava que, quando jovem, era pé de valsa e muito bonita, por isso muito cobiçada pelos rapazes da época. Mesmo assim resolveu ficar sozinha, ocupando-se da sua profissão de enfermeira, parteira e outras coisas, contadas sempre com muitos detalhes. Fui embora do Maranhão e levei toda essa experiência comigo. Volto para matar a saudade sempre que dá.
Um dia, acordei com a notícia dada pela Eunice: “A tia Alice já está com o Pai”. Senti como se o meu coração tivesse parado, um zumbido no ouvido e a mente buscando memórias do nosso último encontro, das conversas, das risadas, das preces e dos hinos antigos que cantava para mim.
Estava morando muito distante, mas pedi para participar do sepultamento, pois tia Alice merecia uma bênção naquele momento. Chovia em São Luís. Como era comum no tempo da Covid-19, Tia Alice não teve direito a um velório decente. No cemitério apenas Eunice, suas irmãs e alguns sobrinhos. Eu, sentado no meu escritório, esperava com a estola na mão. De repente, o celular tocou, abri a chamada de vídeo e vi Eunice de máscara com os olhos tristes. Ela virou o celular para frente e lá estava, sob uma chuva fina, o caixão lacrado da tia Alice.
Coloquei a estola e fiz a oração pedindo a Deus que abrisse a porta do Paraíso a ela. Não aguentei, a chuva veio para os meus olhos e caiu em forma de lágrimas. Não era tristeza, era só saudade.
Desliguei o celular e fiquei sentado, olhando para a parede, imaginando, com detalhes, o sepultamento simples e rápido que estava acontecendo sob a chuva num cemitério tão distante de mim. Confesso a você, nunca imaginei que seria assim, simples e bonito, como foi a vida da tia Alice. E rezei baixinho, mais uma vez: “Que as almas dos fiéis defuntos, pela misericórdia de Deus, descansem em paz!”.