Padre Djalma Lúcio Magalhães Tuniz
Pároco de Américo de Campos e Pontes Gestal
Sair dos próprios limites e voar. Talvez seja essa a definição que mais se adequa a “liberdade”. Ultrapassar as barreiras do próprio conforto e desafiar-se é tornar a vida mais intensa, cheia de possibilidades e experiências que só quem se desafia sabe. É bem verdade que ultrapassar os limites pode ser perigoso e toca, de maneira sutil, um grau de insanidade. Diz o dito popular: “Se faltar coragem, que sobre a loucura”.
Ao lançar um olhar para além da bolha na qual estamos protegidos, encontramos muitas maneiras de viver a vida. Somos, muitas vezes, conformados com o modo próprio que temos de enxergar o mundo e as pessoas. Somos, também, condicionados ao meio em que nascemos e fomos criados. Carregamos marcas profundas da educação que tivemos, dos costumes, da forma de enxergar a vida. E, pode acontecer que, no meio de todos esses condicionamentos que nos fazem ser quem somos, acostumemos a carregar traumas e perturbações que também determinam nossa maneira de pensar e agir, fazendo de nós prisioneiros da nossa própria história.
Paulo, quando escreveu aos Gálatas, afirmou: “Cristo nos libertou para que nós sejamos realmente livres”. Mas, livres de quê? Qual é a liberdade proposta por Jesus que nos garante a proximidade com o Sagrado e conosco mesmos?
Quando padre novo, eu era amigo de uma paroquiana de quase cem anos. Conheci Mariazinha nas missas da paróquia. Vivia sozinha, sem família, numa casinha de três cômodos. Um dia, ela me convidou para ir almoçar em sua casa. Fez uma torta de camarão aos modos antigos, sem muitos recursos gastronômicos e nem baixelas finas, mas com um sabor inigualável.
Enquanto comíamos, tomando um guaraná Jesus gelado na bilha d’água, guardada debaixo da mesa, ela me contava sobre a sua vida e trazia um brilho nos olhos que me encantava. Aquela senhora tinha tudo para ser amarga, triste, sem vida. No entanto, carregava consigo uma liberdade tão sincera diante da sua história que nada a prendia aos infortúnios que vivera. Nem o modo como foi tirada da casa dos pais, ainda pequena, para trabalhar na “casa dos brancos”, como dizia, já não doía mais. Nem a morte do marido de maneira trágica, deixando-a ainda muito jovem e sem filhos, não mais a fazia sofrer.
Fora enganada muitas vezes, por pessoas que se diziam amigas, e outras que tiravam dela ao invés de ajudá-la, mas não carregava rancor ou mágoa em seu coração. Tinha uma forma diferente de olhar os fatos e enfrentar os problemas. Ocupava-se com os seus afazeres, vivia no seu ritmo, sem inveja de ninguém, e rezava por aqueles que lhe fizeram mal. Estava em paz com a sua vida.
Várias vezes, a seu pedido, rezei missas na intenção de pessoas que fizeram parte da sua história. Sabia o mal que alguns deles fizeram a ela, e mesmo assim ela nunca se esqueceu de rezar. Um dia, quando a questionei sobre essas missas, disse-me com voz mansa: “Fico pensando que não tem ninguém que ofereça uma missa por essas almas. Eles eram muito ruins. Então eu rezo. Pode ser que estejam precisando”.
Ela era livre diante dos seus algozes. Carregava em si uma dignidade humana que dava inveja a mim, mesmo sabendo que inveja é pecado. Mas afinal, Jesus na Cruz também não pediu perdão aos soldados que o maltratavam? “Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem”.
Deve haver muitos mistérios difíceis de serem desvendados para fazer com que a liberdade faça morada em nós. Mas, se não buscarmos, como poderemos possuí-la? Se não almejarmos, como poderemos fazer essa experiência profunda de nos tornarmos plenos e em paz conosco mesmos?
Sabemos que o evento da Cruz foi pela livre obediência de Jesus ao Pai. Mesmo prevendo a dor e o sofrimento, Ele aceitou a morte cruenta para dar-nos a Salvação. Esse fato deve nos levar a pensar sobre as responsabilidades que devemos ter diante da vida e das pessoas que nos cercam. Nem sempre o que queremos é o melhor que se deva fazer.
Na minha ordenação presbiteral, uma amiga cantou após a comunhão uma canção que falava sobre “ser livre”. Dizia que não se pode encontrar liberdade fora da fé em Deus e dos caminhos que Ele prepara para cada um de nós. A vontade do Senhor deve ser também a nossa vontade. Descobrir o que Ele reserva para nós é tornar a vida mais leve mesmo com peso dos problemas.
“Quero ser livre, livre para amar”, dizia a canção que, ainda agora, ecoa na minha mente como um mantra trazido dos tempos da juventude. Naqueles dias, talvez apenas um sonho distante de se realizar. Mas, agora, depois de tantas andanças pelo mundo e tantos anos percorridos, começo a acreditar que o desejo de ser livre está cada vez mais perto ou, quem sabe, já hospedado em minha alma.
Ser livre não nos torna egoístas, pelo contrário. A verdadeira liberdade faz de nós mais humildes, pois assumimos nossa história, define quem somos, traz à tona os limites que temos, mas também enaltece as nossas qualidades. Faz de nós eternos peregrinos neste mundo, carregando em nossa bagagem a certeza de que sabemos para onde estamos caminhando. Isso é liberdade.