Os casarões, imponentes na beleza, guardam vários séculos de história. Foram testemunhas de um passado áureo e, hoje, presenciam os olhares curiosos dos turistas e a vida frenética daqueles que trabalham e vivem naquele lugar. Um pequeno grupo do folclore local, o Tambor de Crioula, tocava os seus tambores com ritmos oriundos de um passado distante. Algumas mulheres rodavam com suas saias coloridas e, de mão em mão, iam passando uma imagem de São Benedito, o padroeiro daquele grupo. Tentava imaginar como isso tudo se juntava às pedras das escadarias da Rua do Giz ou nos cantos do Beco de Catarina Mina, que ainda carrega no ar os murmurinhos das conversas de escravos e o sonho da liberdade.
Fico pensando se serei só eu a perceber esses resquícios de história vivida nesse lugar ou se me junto a uma multidão de pessoas que também sentem a alma tocada pelos azulejos vindos do além-mar, e que ainda embelezam esses casarões. O certo é que existem lugares no mundo que tocam a nossa alma de maneira diferente. E aqui é um desses espaços sagrados para mim. Ao longe, vê-se a torre da igreja de São José do Desterro, meio escondida entre os antigos casarões que, mesmo estando fechada e vazia, deixa-se escutar os cantos de louvores ao Deus altíssimo, cantados por tantas vozes já esquecidas pelo tempo, mas que ainda ecoam das suas portas e janelas centenárias, e espalham suas preces pelas pedras de cantaria das ruas e calçadas.
Depois da pequena compra de iguarias e artesanatos da região, voltamos para casa, passando pela igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, na Rua do Egito, e avistando a maré que fazia o movimento de subida, conhecido como preamar, inundando o lamaçal e trazendo os caranguejos, para a felicidade dos moradores das palafitas que ainda flutuam por ali.
Na volta para casa da anfitriã que me acolheu como hóspede e cuidou tão bem desses dias em que lá estive, disse-me que estávamos passando bem perto do cemitério daquele bairro. Logo me lembrei das pessoas queridas que lá estavam sepultadas e dos velórios e celebrações fúnebres que já fizera ali. Ali estava sepultada uma grande amiga, falecida há muitos anos. Ela me perguntou se eu não queria visitar o seu túmulo. Não sabia se conseguiria lembrar o lugar exato em que ela estava, mas resolvi arriscar.
Não foi difícil. Apesar de ser grande aquele campo-santo, estacionamos o carro quase ao lado da sua sepultura. Praticamente dez anos que eu não ia até lá. Mas, de repente, tudo voltou à memória rapidamente. Sobre a lápide, flores novas e alaranjadas recordavam que, há poucos dias, havíamos celebrado finados. Rezei em silêncio pedindo ao bom Deus o seu descanso eterno.
Ao olhar para a sua foto, sorridente e alegre, parecia que conseguia ouvi-la dizendo: “Padre Djalma, a parada é dura!” E ria dos problemas que tinha de resolver. Foi uma pessoa intensa. Viveu tudo o que precisa viver. Amada por muitos e incompreendida por outros. Boa filha, boa catequista, boa professora, boa amiga, boa irmã.
Sua vida cessou justamente quando eu não estava por perto. Fazia uma viagem longa e distante, e, mesmo assim, conseguiram me avisar sobre a sua morte. Eu já havia falado com ela tudo o que queria falar. Visitara no hospital muitas vezes e, um dia, sua fisioterapeuta estava ali para os procedimentos diários e, com a minha chegada, ela pensou que eu seria o seu namorado. Minha amiga, mesmo sem poder falar, debilitada por um forte AVC, pediu através de sinais um papel e uma caneta, e escreveu com muita dificuldade em letras de forma: “Esse é o melhor padre do mundo”.
Foi talvez o nosso último encontro. Retornei da viagem a tempo de celebrar a sua missa de sétimo dia. Igreja cheia. Amigos, parentes, pessoas da comunidade e sua mãe, idosa, chorosa, sentada no primeiro banco. A mãe sempre foi a sua grande preocupação. Dizia que não queria que a mãe morresse antes dela, pois não suportaria essa dor. E assim aconteceu. Morreu antes, aos cinquenta anos de idade, mas com uma vida tão cheia de histórias engraçadas, dedicação aos amigos e devoção a Nossa Senhora da Conceição, que ainda hoje, dez anos depois, sobram lembranças boas e grande saudade da sua presença entre nós.
Voltei para casa com o coração em paz. Essa visita não tinha sido planejada e não me recordava que já fazia uma década desde a sua partida. A paz se deu por saber que tive o privilégio de haver conhecido alguém tão especial. Por ter sido minha família, quando cheguei como padre novo nas terras distantes do Maranhão, por me deixar tão seguro e ensinar tanto sobre a alma maranhense.
Posso dizer que se realiza em minha vida a promessa de Jesus: “Em verdade vos digo, quem tiver deixado casa, irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos, campos, por causa de Mim e do Evangelho, receberá cem vezes mais agora, durante esta vida”. Tenho recebido cem vezes mais. Essa minha irmã é a prova disso. Acolheu-me como membro de sua família e fez por mim tudo o que precisei nos meus primeiros anos de padre, longe de casa, cheio de sonhos e esperança num mundo melhor.
Que Jesus a receba em seu coração e lhe dê o descanso ao lado dos seus que também já se foram. Daqui, apenas saudades e a certeza da vida eterna.
Padre Djalma Lúcio Magalhães Tuniz
Pároco de Américo de Campos e Pontes Gestal