O pastor e o mercenário

Padre Djalma Lúcio Magalhães Tuniz

Pároco de Américo de Campos e Pontes Gestal

 

Um dia, percebi a terra girar. Estava andando no fundo da casa onde morava, num imenso gramado de um campo de futebol, sozinho. Neste mesmo local havia um cemitério e um bosque. Vida e morte se encontravam num só olhar, e eu trazia nessa visão um forte clima de esperança. Tinha algo de Sagrado ali. Fechei os olhos e senti o movimento do Universo. Meu coração acelerou, meu estômago ficou como que cheio de borboletas. Tive a certeza de fazer parte de um grande projeto que foi pensando muito antes de eu existir.

Era uma sensação profunda em saber o que deveria fazer, qual o sentido da minha vida. Não tinha dúvidas, apesar de ainda carregar em mim alguns pontos obscuros que precisavam de um pouco mais de tempo para se clarearem. Dias antes, na missa de domingo, havíamos escutado o evangelho em que Jesus dizia: “Eu sou o Bom Pastor”.

Qual o significado de se autodenominar “bom pastor”? Ele mesmo esclareceu, colocando do outro lado da balança a figura do “mercenário”. O bom pastor dá a vida pelas suas ovelhas, pois é capaz de morrer no lugar delas. Já o mercenário quer tirar proveito, quer lucro, e o seu interesse sempre está nas vantagens que terá cuidando daquelas ovelhas. No momento do perigo, da dificuldade, das incertezas, um foge abandonando tudo, já o outro fica, protege, afugenta o perigo, cuida.

Há tempos essa questão do cuidado com o outro havia se tornado uma grande reflexão para mim. “Não cuidamos uns dos outros”, ouvia e falava o tempo todo, tentando entender como resolver esse problema tão sério entre nós humanos. O pastor que possui um bom coração, tem como característica cuidar e nunca abandonar o rebanho. Aliás, Jesus já havia dito sobre a loucura em deixar tudo para ir em busca da ovelha que se perdeu. Cuidar é arriscar-se constantemente.

Mas, como fazer o papel de bom pastor quando não sentimos forças suficientes para isso? Como ser cuidador, se eu também me sinto ferido e preciso de cuidados?

O amor altruísta, isto é, tudo o que é contrário à figura do mercenário, não pode ser seletivo. Precisa estender os braços, alargar os passos, ser todo coração. Se não conseguirmos isso, nunca saberemos o que é cuidar de verdade e não sentiremos segurança em nos deixar cuidar. Sempre haverá no ar uma desconfiança: “Será que serei abandonado no momento em que mais vou precisar?”.

Hoje, anos depois desse dia em que senti a terra girar, vivo a mesma semana do evangelho do “Bom Pastor”. Foi domingo passado, na missa, ao proclamar a Palavra, percebi que o mais difícil não é cuidar de quem precisa, o mais difícil é distinguir entre o bem e o mal. É saber quem é mercenário, “lobo em pele de cordeiro”, e quem é todo coração. Para isso, são necessários dois movimentos: olhos atentos e alma leve.

Levantar o véu que cobre a simplicidade da vida, voltar a observar os dias que passam numa rapidez estonteante e tirar proveito disso. Como tudo se esvai como a água entre os dedos, é preciso não perder tempo com fatos que não enobrecem a alma. O olhar deve se direcionar para o bem. Perceber as cores, os movimentos, as estações do ano, e, acima de tudo, o grande mistério que cada ser humano carrega. Quando esse olhar deixa de acontecer, tudo vai se enrijecendo, perdendo vida, tornando-se um peso insustentável.

É preciso também trazer a alma leve, o coração livre e se deixar cuidar pelo Bom Pastor. Leveza, liberdade e fé são os segredos para se tornar bom. Se não buscarmos esses três elementos fundamentais da nossa existência, não vamos nos desvencilhar das correntes do mal que insistem em nos tornar escravos do próprio sofrimento.

É muito triste quando não percebemos mais que o pastor, aquele que deveria cuidar do rebanho, é um mercenário, e que o lobo está à espreita. Acostumamo-nos a ter pessoas revoltadas ao nosso redor. Não nos alegramos mais com as alegrias dos outros e não nos entristecemos com as suas tristezas. Apenas cuidamos do nosso próprio mundo, achando que isso basta.

É preciso ter a coragem de dizer não a um modelo de mundo onde as pessoas carregam um coração frio e sombrio. A beleza em viver só é possível através de cuidados mútuos. Às vezes, somos nós que cuidamos, outras vezes merecemos ser cuidados.

Um dos grandes males do mundo de hoje é não perceber que o amor também pode vir acompanhado da dor. Cuidar é abdicar de vários prazeres pessoais para estar com o outro. É compartilhar amor, dor e alegria. É saber usar o tempo para estar com quem precisa, mas é também colocar-se debaixo do olhar do outro, tendo plena confiança em sua ajuda.

Antes de reclamarmos que não podemos mais confiar em ninguém, que existem mais mercenários do que bons pastores, é preciso fazer uma autoavaliação. Sou eu também confiável? Disposto a sofrer com o outro? Livre para cuidar e deixar ser cuidado?

“É dando que se recebe”, encontramos em uma oração de São Francisco de Assis. Tenhamos a alma leve e o coração bom. Deixemos para trás tudo o que nos faz mal e o mundo voltará a ser belo, apesar de tudo.