Imagem de Deus

Desci o monte dias desses. Fiquei por lá seis dias inteiros, mergulhado na Palavra de Deus e tentando entender como podemos tocar o Sagrado, ainda hoje, em meio a esse mundo tão perturbado. Quando erguia as mãos, quase podia tocar as nuvens que, na maioria dos dias, eram cinzas e agitadas. O friozinho da noite era um convite à oração e ao descanso. O dia passava agitado como as nuvens e tinha que correr com ele para dar tempo de tantas leituras, conversas, partilha de vida e de alguns sofrimentos internos. Havia também tempo para alegrias, sorrisos e conversas animadas.

Não estava sozinho. Como poderia viver tão intensamente esses dias de maneira solitária. Não. Comigo, no alto daquele monte, estavam quase trinta religiosas de todas as idades e experiências de Deus em suas vidas. Todos nós buscando a mesma coisa: “fazer uma experiência profunda de Deus”. E, para isso, apenas a bíblia e a disposição de se deixar levar pelo Espírito.

Começamos sempre por onde gosto de colocar a base para os nossos pés: o livro de Gênesis. Sinto-me mais seguro caminhando por esse chão. Olhar Deus criando o mundo e o ser humano, através da sua Palavra e da sua vontade, é extraordinário. “Faça-se”, disse Deus. E tudo foi sendo feito de maneira silenciosa e plena. Apenas a Palavra ocupava o espaço do som. Uma Palavra carregada de vida que, por onde passava, ia deixando em seu rastro os seres criados, ocupando cada qual o seu lugar.

Quando chega o momento final, antes do descanso de Deus, é criado o Ser Humano. Juntaram-se as forças, redobrou o amor, multiplicou o desejo e disse: “Façamos o homem e a mulher”. Tudo parou por um instante. Era como se os outros seres criados soubessem que ali estava a criatura mais bem-acabada, a que poderia ter consciência da sua existência, modificar o seu destino, ir além do seu instinto.

Deu-nos a capacidade de carregar em nós a sua Imagem e, até hoje, temos esse dom. Podemos também chamar de graça, vocação, talento. É um bônus que nasce junto de nós e faz parte da nossa existência. Justamente esse presente nos dá a capacidade de pensar e fazer coisas divinas, como por exemplo, amar e ser amado. O amor vem de Deus e, com a sua Imagem em nós, também devemos amar como Ele.

Mas, no alto do monte, refletimos: “Sabemos realmente amar como Jesus amou?”. E começamos a elencar as nossas misérias, nossos erros, nossas incoerências. E o pior, grande parte desses erros foram cometidos em nome do amor. Usamos o amor para proteger a nossa vontade ou, trazemos um amor altruísta, desinteressado, abnegado, mas pleno de erros egoístas e maldosos.

Por um instante, deixamos de tocar o céu, apesar de estarmos tão perto dele, e começamos a cavar a terra, numa tentativa desesperada de descobrir onde foi que erramos. Na vontade de descobrir a origem dos nossos erros, principalmente daqueles cometidos em nome do amor, encontramos o livre arbítrio.

A liberdade também vem junto com a nossa criação. Trazemos em nós a Imagem de Deus, mas Ele nos fez livres. Não nos faz eternamente escravos dos seus desejos, mas nos coloca as possibilidades e os caminhos bem à nossa frente. No livro de Deuteronômio, encontramos, com clareza, essa liberdade. “Escolhe, pois, a vida”, diz o Senhor, diante das nossas dúvidas entre a vida ou a morte. “A vida”, diz o Senhor que nos criou. Mas é um conselho, um pedido, um palpite.

Palpite de quem nos fez e conhece profundamente a nossa estrutura humana. Sabe das nossas inclinações e da força que tem o mal em nossas decisões. Mesmo assim, Ele, que nos fez a sua Imagem, continua a nos orientar para não cairmos em tentação e nos livrar de todo o mal.

Trazemos em nós essa força d’Aquele que nos criou. Temos a capacidade de sermos bons, como Ele é bom. Por isso, não justifica tanta maldade no mundo. Nossos pensamentos egoístas, nossas atitudes desumanas, nosso fechamento à solidariedade com o outro, não devem fazer parte das nossas escolhas de vida.

Renato Russo, cantor falecido já há alguns anos, dizia: “É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã”. Nesses dias, em nossas reflexões, perguntava-nos se realmente haverá o amanhã. Para onde estamos caminhando? Qual futuro nos espera?

A resposta veio no domingo. O dia nasceu lindo. O sol, já com saudade da terra, pois ficou dias escondido entre as nuvens, derramou os seus raios sobre nós. A natureza ficou ainda mais verde e os passarinhos agitados e barulhentos. Clareou a nossa cabeça e acalentou os nossos corações. Pegamos carona na história de Gedeão, que, aos olhos de Deus era um valente guerreiro, mas em seu coração não passava de um fracassado, e acolhemos para nossas vidas a mensagem que o anjo dava àquele homem: “Vá com a força que te anima…”.

Decidimos, também nós, buscar essa força que trazemos em nossa vida e que, muitas vezes, fica escondida em meio a tantas maldades que juntamos ao longo da nossa história. É bom saber que há uma força, estranha às vezes, mas que nos impulsiona e nos encoraja a seguir adiante. Estranha porque a mesma força que me anima também deve animar o outro. E tanto eu como o outro não conhecemos esse dom que trazemos desde sempre.

Desci o monte. As religiosas, que estavam comigo, seguiram o seu caminho e voltaram para as suas missões. Se nos tornamos melhores em nossos pensamentos e ações, só o tempo dirá. Mas posso lhe dizer um segredo, encontramos um tesouro escondido no alto daquele monte: “A força que nos anima”. Trazemos verdadeiros tesouros em vasos de barro, como já nos havia dito Paulo. E agora temos certeza: Somos todos a Imagem de Deus, e isso ninguém pode nos tirar.

 

Padre Djalma Lúcio Magalhães Tuniz
Pároco de Américo de Campos e Pontes Gestal