Café com bolo de fubá

Padre Djalma Lúcio Magalhães Tuniz

Pároco de Américo de Campos e Pontes Gestal

                                                                         

A noite estava fria e úmida. Uma chuva boba caía lentamente penetrando a alma de quem, como eu, havia chegado tarde em casa, com vontade de tomar um banho quente, colocar uma roupa seca e ir preparando tudo para ter uma boa noite de sono. Dei uma última olhada nas mensagens do celular, para ter certeza de que não havia esquecido nada importante depois desse longo dia de trabalho.

“Boa noite, P. Djalma! Tudo bem?”, iniciava a mensagem que havia chegado às onze horas da noite. Era de uma amiga muito querida de Taubaté, cidade onde morei antes de vir para essa nova vida que estou agora. “Dona Francisquinha não resistiu. Foi para os braços do Pai. Seu coração estava muito fraco e a respiração comprometida. Faleceu agora à noite.”, escreveu com tristeza.

Um filme lento e colorido passou pela minha cabeça. Dona Francisquinha esteve na minha ordenação, na cidade de Parisi, há muitos anos. Eu a reencontrei, depois de muitos anos de padre, já morando de volta a Taubaté. Já estava bem idosa. Morava sozinha. E não demorou muito para que eu começasse a frequentar a sua casa, uma pequena edícula no fundo do quintal de um de seus filhos.

Ela sempre me tratava com muito carinho. Pegava na minha mão, beijava e colocava no seu rosto, num gesto de respeito e amizade. Sua vida não foi fácil. Devido a uma grave doença, perdeu uma filha, que morava e cuidava dela com muito amor. A pequena casa ainda trazia os sinais da presença da filha, principalmente com colagens de flores e borboletas pelas paredes. Sempre me falava dela com muita saudade.

Francisca, foi uma cozinheira de mão cheia. Nos encontros da paróquia, era sempre requisitada para cuidar da cozinha. E realizava essa função com muita alegria e generosidade. Quando nos reencontramos, ela já não podia mais frequentar as missas. Suas pernas não ajudavam mais. Caminhava com dificuldade e muitas dores. Mas, no começo do nosso reencontro, ainda fazia para mim bolo de fubá, depois que descobriu que era o meu favorito. No final, já não conseguia mais. Mas, sempre no nosso café, além das conversas animadas, havia um bolo de fubá que ela pedia para comprar.

Durante algum tempo, teve uma nora que a ajudava nos cuidados com a casa. Cozinhava, limpava e fazia companhia. Via-se nos olhos da nora o respeito pela sogra. Tratava-a como um filho deve tratar a sua mãe. De repente, do nada, ela começou a ter dores de cabeça, precisou fazer uma cirurgia com urgência e faleceu.

Francisquinha ficou sozinha de novo. “Será que conseguirei suportar novamente essa dor?”, confidenciou-me num dia em que seu coração estava quase explodindo de tristeza. Mas, como Deus sempre cuidou dela, fez com que alguns parentes e vizinhos continuassem com os cuidados para com aquela velhinha de passos lentos e rosto rosado.

Uma das vizinhas é que me dava as notícias sobre ela. Como foi generosa com a Francisquinha essa amiga. Uma verdadeira filha. Olhava, cuidava, amava. Fez de tudo para deixá-la mais segura e confortável. Mulher de sorte essa minha velha amiga. Deus nunca a desamparou.

Um dia, antes deu ir embora de Taubaté, fui me despedir dela. Como foi triste esse momento. Chorou, abraçou, beijou a minha mão e colocou-a no seu rosto. Tinha um bolo de fubá sobre a mesa e um café quentinho para tomar. Ela me disse assim, na hora em que me levantei para ir embora: “Quem vai cortar o meu bolo de aniversário nesse ano?”. Era porque, nos últimos anos que lá eu estava, no dia do seu aniversário, cantávamos os parabéns, ela me dava o primeiro pedaço e depois disso eu que cortava o bolo para distribuir para os convidados. Era a alegria da Francisquinha ver esse momento. Ria alto e dava para ver o brilho dos seus olhos.

Meses depois da minha ida, a vizinha me telefonou informando que a colocaram numa casa de repouso. “Vai ser melhor para ela”, disse-me. Chorei com a notícia. Sabia que não havia mais ninguém que pudesse cuidar da Francisquinha e lá ela poderia ter um pouco de dignidade. Mas, também sabia que não era o seu desejo. Tinha suas coisas, sua casinha, suas orquídeas sempre floridas, flores e borboletas coladas nas paredes, deixadas pela filha.

Ainda consegui ir a Taubaté e visitá-la na sua nova morada. Choramos juntos quando nos vimos. Beijou minha mão e colocou-a no seu rosto. Disse: “Não tem bolo de fubá aqui”. E, depois da emoção inicial, conversamos muito, rimos muito e me despedi, dessa vez para sempre.

Há dois dias, minha amiga querida de Taubaté, enviou-me uma mensagem falando que a Francisquinha estava no hospital e não estava bem. Enviei imediatamente um áudio para ela falando do quanto eu a amava e que estava rezando pela sua recuperação. Minha amiga disse que ela ouviu várias vezes e respondia ao áudio como se eu estive lá, conversando pessoalmente com ela.

Agora, nesse momento, ela está sendo velada e daqui a pouco será o sepultamento. A certeza da fé dessa mulher faz-me acreditar que o céu é o seu lugar. Descansará em paz, sem dores e sem tristeza no seu coração. E um dia, com certeza, a encontrarei novamente, para um abraço apertado, atualizarmos as conversas e, quem sabe, na companhia dos anjos tomarmos um delicioso café com bolo de fubá.

 

Foto: Meu último encontro com Francisquinha.
(Taubaté, 23 agosto de 2022)